quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A FIGURA DO IMPUTADO SOB UMA VISÃO CARNELUTTIANA DO HOMEM



Wollney Niermeson Ribeiro Felix
Rodrigo Barros da Silva Ribeiro
Gustavo Farias Alves


Resumo
Este trabalho tem por finalidade uma análise da visão de Francesco Carnelutti, buscando transportar suas concepções para traçar um paralelo com a realidade do sistema prisional brasileiro e suas misérias. Para tanto percorremos o longo percurso do processo penal, iniciando sua trajetória no momento que o antecede, com reflexões acerca da complexa relação de um sistema normativo mais rígido e a violência presente na sociedade, percorrendo o momento da execução da sentença condenatória e a posterior liberação do imputado e seu retorno ao meio social, com todas as implicações resultantes do estigma que este irá carregado, de modo que é factível a nítida semelhança entre o cenário traçado pelo renomado autor, e a realidade de nossa sociedade, assim como nosso ordenamento jurídico. Ao longo do denselvovimento do trabalho, também incorporam seus conceitos ao objeto do artigo, autores da monta de Cesare Beccaria, Luigi Ferrajoli, Salo de Carvalho, Rogério Grecco, objetivando uma visão mais completa do tema, com base nos pensamentos daqueles que também pretendem enxergar a questão penal com olhos mais humanos, e menos legalistas.  A somatória de todas estas concepções e a análise do estado de nosso sistema aponta para a incoerência da valorização desproporcional e desarrazoada da lei, como instrumento único e eficaz para equacionar os problemas da criminalidade, desprezando-se a realidade do individuo que comete o delito, suas raízes com a sociedade e o estado, e grande questão que envolve os próprios valores da mesma. Nitidamente, a uma concepção restrita de problemas tão complexos não poderá repercutir em formas de se combater a violência e a criminalidades, que devem ser tratadas de forma mais ampla, assim como propõe o autor que dá o embasamento teórico deste artigo.

Palavras-chave: Processo Penal, Garantismo penal, Carnelutti.

1.    Introdução

A mitologia do pavor necessita de uma remodelação, retirando-se a capa que encobre a Constituição, compreendendo que negar validade à lei para ostentar os valores do texto constitucional é uma reivindicação democrática, e não um apelo à iniqüidade.
A muito se vislumbra a figura do imputado com uma imagem horrenda, aquele homem que transgredira a norma, partindo do valor moral mais repugnante. No entanto, Cesare Beccaria nos faz refletir e observar em sua obra, “Dos Delitos e Das Penas”, o quanto as penas foram cruéis em outrora, e como os encarcerados sofreram com o caráter meramente punitivo das penas. Vivemos hodiernamente outra realidade?
As cadeias têm transformado “feras em monstros” ainda piores, que retornam a sociedade com a ânsia de voltarem a cometer novamente seus delitos. Como tratarmos para com estes indivíduos?
Antes de qualquer celeuma, é preciso refletir que tais homens precisam mais que tudo, de uma afeição, para isso busquemos uma moralização social, desapegando-nos um pouco da exegese normativa, buscando a dignidade humana através da solidariedade, aquele, principio norteador de nossa carta constitucional, este, objetivo fundamental de nosso estado. (CF/88 art. 1, inciso 3º e art. 4, inciso 1º).
Este artigo não almeja buscar e discutir soluções através da norma diretamente, tendo em vista e de acordo com Luigi Ferrajoli:
Uma norma será válida não somente por sua adequação formal às normas do ordenamento jurídico que lhe são anteriores e estabelecem pressuposto para sua verificação, mas sim a partir do momento em que a validade traz em si elementos de conteúdos materiais, como fundamento da norma, pautados nos direitos fundamentais. (FERRAJOLI, 2002.)

Este axioma por nós discutido nesta obra acadêmica pauta-se em Francesco Carnelutti um dos maiores juristas em tal problemática:
Não se pode fazer uma divisão nítida de homens bons e maus. Infelizmente nossa pequena visão não nos permite diferenciar uma semente do mal naqueles que chamamos de bons, e uma semente do bem naqueles que chamamos de maus. E esta visão tão pequena é devido a nossa inteligência que não está iluminada pelo amor. Basta tratar o transgressor em vez de fera, como um homem, para descobrir a incerta chama de pavio luminoso, que a pena, em vez de apagar deve reavivar. (CARNELUTTI, 2010).

            Amparados pelos preceitos emanados das lições do Carnelutti, iremos neste artigo elaborar reflexões acerca do atual paradigma do imputado em nossa sociedade, desde a concepção acerca da relação dos delitos e do sistema normativo mais ou menos rígido, passando pelo cumprimento da sentença, até o retorno do individuo a sociedade.


2. Ultrapassando uma visão meramente normativista

Fatores múltiplos, cujo reflexo aglomeraram-se ao longo dos tempos, levaram o sistema prisional a um estado de calamidade, chegando a ser um caos. Diante disto, a opinião pública apresenta esse como um dos mais relevantes problemas sociais contemporâneos, não só em outros países, como também no Brasil.
A sociedade vive desde muito, uma concepção meramente coerciva da pena, através da qual pleiteia-se eliminar vorazmente do convívio social aqueles indivíduos que transgrediram a norma em determinado momento funesto de suas vidas. Transportando para o estado toda a função educacional e pedagógica da punição, como se não tivéssemos culpa alguma do mal cometido pelo imputado.
Os imensos problemas enfrentados pelo sistema prisional brasileiro, se observado segundo a ótica de Carnelutti, não ensejam que as soluções daqueles que se arvoram em um direito mais rígido não compreendem o problema em sua real acepção, pois é preciso transpassar tal mentalidade para entender que o problema real não está na norma ou em seu cumprimento, e sim na, sociedade egocêntrica desde os primórdios de sua existência, indicado o que realmente necessita de um aprimoramento: “A batalha não é pela reforma da lei, mas pela reforma dos costumes.” (CARNELUTTI, 2010; p. 76).

Se é verdade que cada fase da civilização tem o sei ídolo, o ídolo de que atravessamos, hoje, é o direito. Nós nos tornamos adoradores do direito. Ora, não há experiência, como a experiência penal, apta a destruir esta idolatria, As misérias do processo penal, são aspectos da miséria fundamental do direito. Se procurei descobri-las, o sentido que me guiou não esta voltado a desacreditar uma instituição, a qual dediquei toda minha vida, mas alertar contra a sua apreciação exagerada. Não se trata de desvalorizar o direito, mas de evitar que seja supervalorizado. Em suma, desenganar o homem comum sobre este ponto: que baste ter boas leis e bons juízes para alcançar a civilidade.  (CARNELUTTI, 2010, p. 74).


3. A tragédia do imputado no cumprimento da sentença

A palavra tragédia, derivada do grego, quer dizer em seu sentido literal, peça de teatro cujo desfecho é um acontecimento funesto. Falamos aqui não em uma ficção, mas em fatos reais, porém aquele se coincide com estes, por ambos obterem fins trágicos e não almejados pela norma.
É aproximado o dia do cumprimento da sentença, entre outras palavras, após a constatação do diagnostico pelo magistrado em seu julgamento, é chegado o momento em que “a fera doente”, buscará sua cura através do tratamento outorgado pelo estado, na prisão. Este dia mais se parece com um funeral do que com a própria justiça, porque após ouvida a sentença pelos que ali estão a escutar, todos voltam para suas casas e trabalhos e esquecem-se do morto, lembro-vos porém que aquele condenado fora sepultado vivo, pois nossos presídios mais parecem-se com cemitérios, que ao invés de fazer renascer um homem, enterra-o de vez como aquele que não poderá jamais voltar ao convívio social.
Não é preciso muito para entender que, em vez de cemitério, deveria ser um hospital, mas basta ter compreendido isto para descobrir o erro de quem pensa que, com a condenação, o processo tenha terminado. (CARNELUTTI, 2010, p. 72).

O juiz da Vara de Execuções Penais de João Pessoa, Carlos Martins Beltrão, elenca que a cada dez presos que desfrutam da liberdade, apenas dois saem com o objetivo de não voltarem mais para o presídio. Destarte, 80% são, de alguma forma, “induzidos” a praticar os ilícitos e permanecem coexistindo na criminalidade. “O Estado não tem condições nenhuma de recuperar essas pessoas. Elas acabam não sendo ressocializadas de fato e, sem emprego e sem ter como sustentar a família, acabam voltando para a mesma situação e retornam ao presídio”, explica. (SANTOS, 2010, p. 2).
Embora não disponibilizemos de dados formais, a Secretaria de Cidadania e Administração Penitenciária da Paraíba (Secap) estima que a média de reincidência na Paraíba seja de 50%. A política penitenciária adotada no Brasil não concerne aos anseios da sociedade, ao encarcerarem o presidiário de modo sufocador e atroz, tornam o encarcerado em vítima e a vítima (sociedade) em algoz. A questão prisional não pode mais ser erigida de maneira extremamente simples. O tempo conjectura em oposição à sociedade, pois nossos presídios formam “anomalias” e os devolvem à sociedade piores de como ingressaram no sistema. O recolhimento do apenado é apenas o princípio de toda a pedagogia atrelada à lei.

4. A liberação em face da expiação eterna do egresso
Após dias enclausurado, contando as horas para se ver livre daquele local agonizante, o apenado no momento da libertação observa atentamente para o abrir da cela, neste momento não existem nem barras, nem agentes penitenciários que possam impedi-lo de libertar-se, mas com o passar das grades, ele observa que a sociedade é quem o aprisionará para sempre, destruindo de vez o sonho de tornar-se um novo homem, construir uma nova vida, firmada na justiça e no direito.

O Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal lançaram uma campanha em rádios e televisões denominada começar de novo, para fazer a sociedade refletir, bem como motivarem as empresas a se abrirem, dando oportunidades de emprego a quem já cumpriu pena, na tentativa de atenuar o preconceito dispensado aos egressos e despertar a reciprocidade de obrigações e interesses para com aqueles que estão empenhando-se para voltar ao convívio social.

          Proporcionar trabalhos para eles em uma empresa pode ensejar riscos, como muitos receiam, pois alguns podem não fazer valorizar à confiança lhes prestada, mas deixá-los do lado de fora, à margem da sociedade, pode trazer riscos bem maiores. Sem emprego e oportunidades, a maioria dos ex-detentos envereda novamente ao mundo do crime. Transpondo danos ainda piores à sociedade.

Mas não podemos nos omitir em permitir que por descaso do próprio estado, aquele egresso retorne ainda pior para a sociedade. Destarte, nesta inércia apresentada pelo estado, uma das possíveis soluções seria a união entre a sociedade e o grande mediador, bem como, uma nova moralização social quanto ao seu papel de atuação no objetivo comum de proporcionar uma vida mais digna para o egresso, através de novas oportunidades; Atentando para os direitos humanos, que se fazem fundamentais para os egressos, sob uma ótica garantista, pois nas palavras de Salo de Carvalho ao citar Ferrajoli:
A teoria do garantismo penal, antes de mais nada, se propõe a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de ‘controle social’ maniqueísta que coloca a ‘defesa social’ acima dos direitos e garantias individuais. Percebido dessa forma, o modelo garantista permite a criação de um instrumental prático-teórico idôneo à tutela dos direitos contra a irracionalidade dos poderes, sejam públicos ou privados. (GRECO, 2009).


5. CONCLUSÃO
           
A somatória de todas estas concepções e a análise do estado de nosso sistema aponta para a incoerência da valorização desproporcional e desarrazoada da lei, como instrumento único e eficaz para equacionar os problemas da criminalidade, desprezando-se a realidade do individuo que comete o delito, suas raízes com a sociedade e o estado, e grande questão que envolve os próprios valores da mesma. Nitidamente, a uma concepção restrita de problemas tão complexos não poderá repercutir em formas de se combater a violência e a criminalidades, que devem ser tratadas de forma mais ampla, assim como propõe o autor que dá o embasamento teórico deste artigo.
Deste modo um dois mais importantes penalistas, conhecido pelo epíteto de príncipe dos penalistas brasileiros, Nelson Hungria, resume toda problemática abordada nesta obra, em uma só elucidação: "Os penalistas deveriam esquecer um pouco das dogmáticas e irem para as ruas, para o chão do átrio onde ecoa o rumor das ruas, o vozeio da multidão, o fragor do mundo, o bramido da tragédia humana”.

6. REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Trad.: Marcílio Teixeira. Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1979.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 29 ed. Brasília: Câmara dos deputados, Coordenação de Publicações, 2008.

BURGARELLI, Bruno; KNEIPP, Albergaria. A pluralidade de Partidos Políticos. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Editora Edijur, 2010.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral. 11 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.

SANTOS, Jacqueline. 80% dos presos em liberdade voltam ao crimeJornal da Paraíba, Paraíba, p. 2, 9 mai. 2010.
Disponível em: http://jornaldaparaiba.globo.com/noticia.php?id=14807. Acesso em: 10 de Novembro de 2010.

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